quarta-feira, 24 de junho de 2009

Acenaste para mim e sorriste!

Na cidade de Sacavém, a classe média-alta anda a par e passo com a pobreza extrema. Basta olhar para a urbanização Real Forte, onde futebolistas e actores têm o seu extra-caro dormitório, e para as ruas estreitas e labirínticas do resto da cidade, à semelhança da glória empoeirada bairrista, puída e gasta na sua simplicidade.
Passo por esta realidade todos os dias, a caminho ou na volta do trabalho. O acontecimento de hoje deu-se no percurso para o trabalho, engalfinhada no trânsito matinal.
Sem auto rádio (avariou e não há neste momento verba para outro), tenho possibilidade de observar com mais atenção os rostos que pairam pelos passeios. Os operários fabris alinhados com os balconistas de bancos, fardas distintas mas sempre fardas – macacão de sarja para uns e fato e gravata para outros – nas paragens do autocarro, os despreocupados “teenagers” a caminhos dos exames nacionais, temendo a nota mas antecipando o ócio das férias, donas de casa reformadas, com as mãos activas a implorarem por ocupação, enfim, um mar de gente, gestos, cores, expressões num turbilhão de variedade.
Olhei para ti.
Levavas na cabeça um boné, nos pés um par de ténis, umas bermudas e o que me pareceu um casaco desportivo cobrindo um pólo ou t-shirt. Tudo isto outrora foi colorido, mas hoje adquiriu o cinzento típico da tua situação: sem-abrigo.
A barba decorava o teu rosto de uma forma tosca e quase natalícia, aludindo ao gordinho bem-disposto de fato vermelho. Mas tu não eras gordo.
As mangas arregaçadas do teu casaco descobriam uns braços finos, famintos, magros de alimento e de protecção. Igualmente as tuas canelas mostravam o mesmo abandono, surgindo pelas bermudas fora e mergulhando no gasto calçado.
Mas o que me chamou a atenção não foi tudo isto. Infelizmente há muitos como tu, ao abandono pelas ruas das metrópoles que te querem invisível.
Carregavas no teu colo, com jeito de infante, um peluche. Um coelho de orelhas compridas. Protegias contra o vento, a poeira, o buliço, uma mão sobre o seu corpo desajeitado e outra amparando o seu inexistente peso. Há muito que se esvaíram as suas cores, pensadas e fabricadas para alegrar uma infância despreocupada.
E olhaste para mim.
Deste-te conta que, na fila interminável de carros barulhentos e poluidores, alguém te observava. E levantaste a mão… acenaste… e sorriste!
Fiquei sem reacção. Esbocei um tímido sorriso, mas tive de seguir caminho que o serpentear dos carros voltava a ter movimento. Ainda vislumbrei a tua figura no espelho retrovisor.
Como consegues tu, desalojado, sem abrigo, sem eira nem beira, vivendo de despojos e boa vontade – se a houver! – ter um sorriso para mim? Porventura consideras-me a mim, pobre e desafortunada? Porque corro, luto e labuto para ganhar o parco “tostão” que compra bens necessários e desnecessários, porque vivo com pressão e pressa o dia a dia, porque possuo máquinas que fazem todo o trabalho doméstico e acabo por passar – mesmo assim – pouco tempo com os que me fazem falta?
Deixaste-me vazia…

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